Nada mais difícil do que analisar as mídias, porque é na articulação de seus diferentes componentes que nasce o sentido. De um mesmo golpe, isto obriga a recorrer a diferentes disciplinas. Se se quer estudar o que aparece na tela da televisão, na página do jornal ou nas ondas do rádio, deve-se apelar às técnicas de análise da semiologia, das ciências da linguagem ou da história ; se se querem estudar as práticas e intenções dos fabricantes de informação, deve-se apelar às técnicas de enquete sociológica ou aquelas da psicologia experimental ; finalmente, se se vai tentar interpretar o sentido das informações em termos de imaginário, será necessário recorrer à antropologia. Sem contar que, em se tratando da informação e da opinião, elas não se constroem somente através da televisão. Há outras mídias (rádio, imprensa escrita), outros espaços públicos (manifestações, lugares profissionais, bares) e privados (família, círculo de amizades) nos quais circula a palavra social, e todos, no seu conjunto, contribuem para fabricar esta alquimia que é a opinião pública. Longe de ser homogênea, ela é fragmentada. Enfim, se ainda faltava acrescentar dificuldade à análise das mídias, ressaltamos que essas não podem ser compreendidas e interpretadas a não ser no quadro de cada contexto cultural, observando que algumas de suas estratégias e dos efeitos que elas produzem se encontram em contextos culturais diferentes.
Eu vou analisar este acontecimento do ponto de vista de quem observa o discurso sob suas formas verbais e icônicas [1] e de quem sabe que o sentido social é resultado de uma interação entre os parceiros de uma troca (aqui a instância midiática e a instância pública), cuja interação depende do dispositivo que a estrutura ; enfim, do ponto de vista daquele que se interroga sobre os efeitos de sentido produzidos pelos atos de enunciação discursiva, sabendo que não há necessariamente simetria entre os efeitos visados pela instância midiática e os efeitos efetivamente produzidos sobre a instância pública.
Muitas coisas foram ditas sobre o 11 de setembro, ainda que não se possa jamais dizer, enquanto pesquisador, que tudo já foi dito. Eu partirei de uma hipótese amplamente partilhada pelos investigadores em ciências humanas e sociais : o acontecimento não existe em si, ele é sempre construído. Não é que se negue a existência de uma realidade no interior da qual surjam fenômenos. Mas isso só se coloca no que diz respeito à sua significação. O acontecimento é sempre resultado de uma leitura, e é essa leitura que o constrói.
Neste caso, na ocorrência do acontecimento midiático, está-se frente a uma dupla construção : aquela de uma mise-en-scène, a partir da sua transmissão, e que revela o olhar e a leitura da instância midiática e aquela do leitor-ouvinte-telespectador que a recebe e a interpreta. Partindo dessa hipótese, é-se conduzido a analisar as características dessa encenação para tentar descobrir os efeitos de sentido. Examinarei, portanto, inicialmente a encenação da televisão francesa sobre o acontecimento que nos ocupa aqui ; eu me interrogarei sobre os efeitos da imagem. Observarei como, no dispositivo televisual, os relatos e comentários jornalísticos influenciam o sentido dessas imagens, para concluir com uma proposição de hipóteses interpretativas que se pode fazer em termos de “imaginários sociais”.
Em se tratando dos acontecimentos de 11 de setembro, não há nada neles de muito banal. Vê-se aí o entrecruzamento de dois tipos de cenários : os cenários de filmes-catástrofes e os cenários de reportagens que lembram os conflitos, as guerras e as catástrofes naturais.
O cenário-filme (tipo Inferno na torre) é organizado à maneira do conto popular : (1) uma situação de partida, na qual se vêem pessoas se reunirem (ou viverem) em um lugar (o futuro lugar da catástrofe) ; prepararem-se para uma cerimônia festiva (ou ocuparem-se livremente com suas tarefas cotidianas), em um estado de alegria e real felicidade, a menos que não seja de tranqüila despreocupação ou mesmo de conflitos psicológicos ; (2) o surgimento da catástrofe no curso da qual nos é mostrada, em paralelo, a enormidade da explosão destrutiva e as reações das pessoas (os que têm medo e gritam, os que têm medo e se atiram num canto, os que buscam sair de uma maneira egoísta, os que enfim enfrentam a situação e tentam organizar a saída dos outros ; (3) e, depois, evidentemente, como esses heróis do interior não são suficientes, aparecem os heróis vindos do exterior (os bombeiros, a polícia, o exército, as autoridades locais e nacionais, segundo os casos), os quais, ao final de duras provas, acabarão por vencer o perigo e por salvar o maior número de pessoas.
O cenário-reportagem caracteriza-se pelo : (a) anúncio do desencadeamento de um conflito ; (b) exibição das imagens de depois do acontecimento conflituoso (porque raramente a câmera pode se encontrar presente no momento do drama), imagens que se detêm sobre os resultados dos desgastes materiais, e, sobretudo, sobre as vítimas ; © ação dos socorros (Cruz Vermelha, ambulâncias, hospitais, médicos, bombeiros, associações humanitárias).
Esses dois tipos de cenários (cenário-filme e cenário-reportagem) têm, entretanto, um ponto comum : eles colocam sempre em cena três tipos de atores : as vítimas, os responsáveis e os salvadores [2]. Eles focalizam, segundo o caso, as vítimas, para produzir um efeito de “compaixão” ; o agressor, fonte do mal, para produzir um efeito de “antipatia” ; o salvador reparador, para produzir um efeito de “simpatia” [3].
Os acontecimentos do 11 de setembro foram relacionados a esses dois tipos de cenários com algumas peculiaridades. A situação inicial, feita de tranqüilidade, anterior à desordem do mundo, está ausente. Do ponto de vista das mídias, pressupõe-se a existência de uma ordem no mundo antes que surja a desordem sobre a qual elas têm algo a dizer. O surgimento dos fatos (o impacto dos aviões sobre as torres e as suas implosões), como nos cenários dos filmes (raramente nesses de reportagens televisivas), foi filmado em direto devido à casualidade de haver inicialmente câmeras de amadores, e, depois, pela presença de câmeras jornalísticas. O fato de os telespectadores identificarem ou não essas imagens diferenciadas não altera em nada os efeitos de realidade e autenticidade que elas comportavam (essa vez a televisão não teve necessidade de acrescentar efeitos de autenticidade). Esse efeito, sejam quais forem os sentimentos que animavam os telespectadores, só poderia deixá-los perplexos, sem voz. As vítimas são tratadas com as imagens habituais das reportagens : exibição dos feridos e contabilidade abstrata do número de vítimas, o que produz ao mesmo tempo um efeito de anonimato e de horror [4]. Ressalta-se, entretanto, que não se viram vítimas mortas, nem cadáveres e que pouco foi mostrado dos corpos transportados de urgência. Muitos comentários foram feitos a esse respeito : “muita lágrima e pouco sangue” [5]. Além disso, sabe-se que a CNN declarou não ter desejado “traumatizar o povo americano” e não ter querido exibir provas de “mau gosto”. Essa declaração é curiosa, vinda da parte de um órgão de informação que, por todos os cantos, exibiu imagens de palestinos alegres em Naplouse e que, nas reportagens sobre outros conflitos (Bósnia e Kosovo), pega pesado ao tratar do estado das vítimas [6]. Em contrapartida, foram apresentadas entrevistas com numerosas testemunhas, todas contando as mesmas coisas, com idênticas palavras sobre o que viram, escutaram ou viveram. Trata-se aqui, na maioria dos casos, de testemunhas que estavam nas torres ou próximas delas e que, portanto, escaparam da morte : o testemunho de um sobrevivente produz sempre um efeito de fascinação, porque ele nos envia aos acasos do nosso próprio destino : por que, em uma mesma situação de perigo, alguns morrem e outros ficam vivos ? Mais ainda, essas testemunhas se apresentam como vítimas inocentes, porque elas não pedem nada a ninguém, elas estavam somente (ou iam) no seu trabalho cotidiano, como todo bom cidadão ou cidadã : senhores e senhoras, todo mundo que poderia ter sido nós mesmos. Quanto aos salvadores, bem, esses foram mostrados à exaustão, particularmente a intervenção e as entrevistas dos bombeiros de quem foi destacado o heroísmo, assim como a presença no local de personalidades políticas, particularmente o prefeito de Nova York, grande figura carismática, declarado mais tarde o herói do dia. Posteriormente, apareceu sobre a cena midiática o grande salvador – de fato “o grande reparador”, porque o mal já havia sido feito – com um grande discurso, tentando preservar, simbolicamente, a identidade do povo americano, a integridade e poder da América, depois sob a figura do “vingador”, chamado à cruzada e à guerra contra o terrorismo.
O que é uma imagem sintoma ? É uma imagem “já vista”. É uma imagem que reenvia a outras imagens, seja por analogia formal (uma imagem de torre que cai reenvia a outras imagens de torres que implodem), seja pelo discurso verbal interposto (uma imagem de catástrofe aérea reenvia a todos os relatos ouvidos sobre as catástrofes aéreas). Toda a imagem tem um poder de evocação variável, que depende daquele que a recebe, uma vez que ela se interpreta em relação às outras imagens e relatos que cada um mobiliza. Assim, o valor dito referencial da imagem, seu "valor para" a realidade empírica, aparece desde o seu nascimento como enviesado, pelo fato de ser uma construção que depende de um jogo de “intertextualidade”, o qual lhe confere uma significação plural, jamais unívoca. A imagem das torres que implodem no 11 de setembro de 2001 não tem uma só e mesma significação. Uma imagem sintoma é também uma imagem dotada de uma forte “carga semântica”. Todas as imagens têm sentido, mas nem todas têm necessariamente efeito sintoma. É preciso que elas sejam cheias daquilo que mais atinge os indivíduos : os dramas, as alegrias, os sofrimentos ou a simples nostalgia de um passado perdido. A imagem deve reenviar a imaginários profundos da vida ; deve ser igualmente uma imagem “simples”, reduzida a alguns traços dominantes, como o sabem fazer os caricaturistas, pois a complexidade perturba a memória e impede a escolha de seu efeito simbólico. Enfim, a imagem deve aparecer recorrentemente, tanto na história, como no presente, para que ela possa se fixar nas memórias e para que ela acabe por se instantaneizar. A imagem em movimento, à força de muita repetição, acaba por se fixar em uma espécie de parada e torna-se fotográfica ; a gente sabe bem que é a fotografia que fixa melhor, na memória, os dramas da vida (é suficiente lembrar-se do foto da pequena vietnamita que corre, nua, no meio de pessoas para fugir dos horrores da guerra).
Assim, carregadas semanticamente, simplificadas e fortemente reiteradas, as imagens acabam por tomar lugar nas memórias coletivas, como sintomas de acontecimentos dramáticos. Pensemos na estrela amarela dos judeus, nas dentaduras, nos corpos descarnados e nos crânios raspados dos campos de concentração, no desfilar de populações caminhando lentamente, o corpo curvado sob o peso de sua mochila, fugindo da miséria ou perseguição.
Da mesma forma, por ocasião dos acontecimentos de 11 de setembro, são essencialmente as imagens desses aviões que não cessam de penetrar nas torres, dessas torres que não cessam de cair, que ficaram nas representações sob a forma de duas torres ainda perfiladas, cercadas de uma nuvem de fumaça, tendo ao seu lado um avião que parece muito pequeno, como mostra muito bem a caricatura anexada. E essas imagens de torres que se inflamam e depois tombam nos dão ao mesmo tempo uma impressão já vista : do já visto em filmes de catástrofes (O inferno na torre, Armagedon), do já visto em reportagens que mostram a destruição por implosões de imóveis de cidades operárias. Mas elas também dão uma impressão, mais profundamente, do já sentido. É alguma coisa que, surgindo do nada, nos fascina tanto, porque, em nossos imaginários, supomos que se trata do diabo ou do destino. É o ferimento e a degradação do coração de qualquer coisa que pode ser percebida de maneira diferente, mas que, em todos os casos, representa a vida, o que há de vital no povo. E talvez aqueles de uma tecnologia (o desafio, depois das catedrais, de elevar sempre mais alto uma construção contra as leis do equilíbrio e da gravidade) ; esses de uma identidade coletiva (confiante de poder se reconhecer em um monumento simbólico ; é suficiente pensar no que representaria para os franceses se se tratasse da Torre Eiffel). Mas é também o ferimento e a degradação de tudo o que, em nossas vidas, pode ruir ou desaparecer : ambições, realizações pessoais, seres que nos são queridos. Trata-se de uma analogia mais abstrata, mas ao mesmo tempo pregnante, que é reforçada pelo fato de que essas imagens apareceram sem som [7], como em um filme mudo que confere às imagens uma certa atemporalidade, produzindo um efeito de espelho. E pode-se levantar a hipótese de que a conjunção entre cenário fílmico (que nos envia à ficção), o cenário de reportagem (que nos remete à realidade) e imagem-sintoma de desabamento, nos remeta para o outro lado do espelho onde, talvez, “tu retornarás a pó”. Evidentemente, nada disso aconteceu na mediatização da Guerra do Golfo, impregnada da frieza de um jogo de videogame.
Aqui se acrescenta um dado comunicacional. Estas imagens-sintomas se impõem a nós de maneira inflexível e nos abalam a ponto de só permitir que vejamos nelas sua força simbólica. Entretanto, elas não vêm de nenhuma parte e não chegam por uma operação do Espírito Santo. Nós as recebemos através de um dispositivo, no caso, o dispositivo televisual, e é lá que começam os problemas da informação e as interrogações sobre a deontologia da informação.
O dispositivo televisual da informação atribui de antemão um lugar ao telespectador, aquele de cidadão que deve se informar dos acontecimentos do mundo. Pela mesma ocasião, ele revela o lugar da instância da informação : relacionar os acontecimentos do mundo na sua autenticidade, e tentar explicá-los. Como, ao mesmo tempo, sabe-se que este dispositivo é feito para tentar tocar o maior número de telespectadores, dada a lógica comercial à qual é preciso obedecer, instância de informação e telespectadores se encontram em uma dupla relação que implica afeto (as emoções) e razão (a compreensão), sem que se possa distingui-los. Desde então se instaura um mal-entendido entre essas duas instâncias, pois, por contrato, o telespectador considera a imagem na sua função mimética, isto é, como dando conta da realidade do mundo, enquanto ela é encarregada de efeitos emocionais que são trazidos não apenas pelo seu valor sintoma, mas igualmente pelas descrições, pelos relatos e pelos comentários que lhe são feitos.
Aqui, do conjunto dos relatos e comentários produzidos pela televisão, destacam-se duas características : (i) o acontecimento é inexplicável ; (ii) os atores e as causas são "essencializadas". O "inexplicável" é o que, no final das contas, ultrapassa o entendimento, não podendo, portanto, remontar a uma causa profunda, última. Como em um relato fantástico, isto alimenta o suspense de não se saber qual a causa dos acontecimentos nem a origem escondida em seu fundamento. Para compensar essa ausência de explicação, as causas e os atores são "essencializados", isto é, as causas são apresentadas de maneira global e os atores, como entidades abstratas, como se se tratasse da essência das coisas que existem na natureza.
Por exemplo, aqui, a fonte do mal é apresentada inicialmente de maneira global, como "ato terrorista". Depois, os atores são identificados sob a denominação de uma categoria de indivíduos anônimos, os "kamikazes", o que é feito pelo viés da analogia com Pearl Harbor. Em seguida, eles são caracterizados como "artesãos" por terem utilizado faca, mas ao mesmo tempo de "malandros modernos" porque se percebe que, como quando se prepara uma "caça" com meios perfeitos, eles recorreram a meios de comunicação sofisticados. Mas só poderia tratar-se ali de atores executantes e não de comandantes, os verdadeiros agressores. Fala-se então de denominações globalizantes de etnia (Talibãs) ou de lugares (Afeganistão), ou de nomes para designar o verdadeiro culpado, Bin Laden, acusado de ter comandado e preparado o atentado de longa data. Mas esse Bin Laden, então uma figura desconhecida do público, é beneficiado pela mesma essencialização que os outros como "agressor do mundo ocidental". Trata-se, nesse caso, de denominações que têm por efeito deslanchar uma interrogação sem fim : afinal quem está por trás de tudo isso ? É o agressor indeterminado que pode se encontrar ao mesmo tempo por toda e nenhuma parte. É o efeito paranóico assegurado pela idéia de um complô ou da existência de uma cabeça escondida, grande organizadora da desordem do mundo.
Para tentar explicar o como isso é possível ? Aponta-se, inicialmente, uma pequena causa : a fraqueza dos serviços de contra-espionagem ; depois uma "verdadeira" causa, globalizante : o ataque de uma civilização, a do mundo livre (o ocidente), por uma outra civilização (o oriente) e uma outra religião (a islâmica), lugar de um obscurantismo fanático [8]. É esta causa, essencializada, que, associada à partilha do sofrimento que endurece os sobreviventes e seus próximos, produz uma outra essencialização, a da solidariedade que podem experimentar os indivíduos que pertencem a cada uma dessas civilizações : de um lado, uma solidariedade do "nós somos todos americanos" de J.M. Colombanie, no editorial do jornal Le Monde, (impossível a partir da Guerra do Golfo, pois se tratava de uma guerra de muitos Estados contra um Estado, todos bem determinados) ; de outro, uma solidariedade dos países árabes, mesmo se ela fosse prudente e midiaticamente representada pelas imagens de Naplouse. Um pouco mais tarde foi destacada a "arrogância americana" (sobretudo pela imprensa) por comparação entre os mortos do World Trade Center e aqueles de outras guerras ou genocídios (Iraque, Ruanda, Intifada, etc.), permitidos ou suscitados na América, a partir da análise de sua política internacional, de seu intervencionismo no mundo, julgado como um justo retorno das coisas. Pois lá onde há um duplo-americanismo, há também uma anti-americanismo que é preciso satisfazer.
Enfim, é a essencialização da reparação possível decorrente da construção de várias figuras absolutas. A do "vingador", braço da vontade divina, do Deus que castiga, aquele da bíblia dos protestantes de que se investe G.W. Bush em suas declarações contra "o império do mal" : "um combate monumental entre o bem e o mal". A do "grande cowboy justiceiro" ("Procurado. Ben Laden") como retorno às origens da fundação da América através do imaginário do Oeste. A do "cavaleiro", da Idade Média, sem medo e sem censura que recorre à "cruzada contra os islâmicos que declaram guerra ao ocidente".
O que me interessa aqui não são tanto as estratégias que utilizam as mídias para dar conta dos acontecimentos (que entretanto devem ser analisadas), mas o sentido social, os imaginários e os efeitos de que eles são portadores. No conjunto dos acontecimentos do 11 de setembro, por exemplo, produz-se uma fusão de efeitos de emoção e de efeitos de razão : fusão entre o ato terrorista (emocional), seu porquê e a arrogância americana (opinião), o “malvado” árabe islâmico Ben Laden (emocional) e o salvador da identidade americana, G.W. Bush (emocional), como se apresentou seu pai por ocasião da guerra do Golfo. Mas também se vê aí a encenação de uma variação em torno do imaginário do “poder” que resume a caricatura de Plantu : (a) o grande desafio ao poder do poderoso, relato recorrente depois do pecado original, depois da revolta de Caim, passando por Davi frente Golias ; (b) o deboche sobre o poder tecnológico pelo triunfo da mão sobre a máquina que coloca em xeque o que o humano tem de mais autêntico : seu corpo ; © a ironia do destino como justo castigo de Deus que recorre ao poderoso para se crer invulnerável, e acaba por "virar" o mundo contra si ; (d) a ameaça do mal supremo, tornado poderoso pela sua essência anônima, representada pelas figuras abstratas ou indeterminadas (Ben Laden, os Talibãs) que sugerem a existência de um grupo com vontade de agir, ator de um grande complô contra o mundo [9] ; (e) a tentativa de contra-poder pela imagem, como havíamos dito, do vingador G. W. Bush, mas também pelas declarações e movimentos de solidariedade em relação às vítimas sofredoras, como se todos nós estivéssemos ligados por uma culpabilidade comum (eis o imaginário do "humanitário").
Em vista dos imaginários que surgem no tratamento que as mídias fazem dos acontecimentos, pode-se compreender que, em uma sociedade de abundância em que vive o mundo ocidental, sem no entanto resolver os problemas e dramas do cotidiano de cada um, o telespectador-cidadão se refugia no espetáculo do sofrimento dos outros. E se poderá estabelecer um paralelo entre aquilo que produz um tal tratamento da informação e o que produzem as emissões do tipo Big Brother (ou Loft Story) que permitem a alguns de se refugiar no espetáculo da "mediocridade" (no sentido etimológico) para se livrar da sua. Também se poderá estabelecer um paralelo entre determinadas emissões de divertimento que convidam homens e mulheres políticas para falar sobre sua vida privada e algumas vezes colocá-los em ridículo [10], possibilitando que nos refugiemos no discurso sobre o "descrédito da classe política" para justificar nosso apolitismo (ausência de política).
De fato, formamos todos uma imensa "diáspora" de telespectadores, para retomar uma categoria proposta por Daniel Dayan [11]. É uma diáspora de circunstância que se assemelha ao momento do surgimento de um acontecimento tornado público mundialmente pela televisão, tratado, construído, e dramatizado por ela, uma diáspora de telespectadores reunidos no mesmo desejo de voyeurismo e compaixão.
Aparece aqui uma das questões que não cessa de ser discutida pelos pesquisadores, pensadores e filósofos, após os anos 70 : as mídias são um instrumento de dominação ideológica, ou despolitização da vida social, em proveito de uma lógica comercial ? Nesse debate, tão difícil de resolver, podem-se fazer três observações.
A primeira concerne à independência das mídias, no caso, a televisão. Por ocasião da Guerra do Golfo, a televisão foi completamente instrumentalizada por um aparelho de Estado (que tinha a cara do Pentágono). Este terminou por impor às mídias a ideologia das forças dominantes (os aliados), que se outorgaram o “direito à intervenção armada” contra um agressor, considerado uma ameaça à soberania de um povo e, ao mesmo tempo, a uma parte do bem comum do mundo ocidental (o petróleo) ; o "direito a se dirigir contra um agente de satã", na pessoa de Saddam Hussein bem satanizada ; de uma guerra própria e cirúrgica [12] que celebrava ao mesmo tempo o triunfo e a excelência da tecnologia moderna. Em relação à guerra da Croácia e da Bósnia, em contrapartida, a televisão provou autonomia em relação aos aparelhos de Estado. É o que se pode observar na mudança relativamente rápida da tomada de posição em favor da vítimas bósnias, na interpelação constante das autoridades e governos ocidentais, na prudência com a qual foi tratado o assunto dos campos. Pode-se falar aqui de uma "independência" da televisão, precisando que se trata de uma independência externa em relação aos aparelhos de Estado, mas pontual à própria máquina midiática que tem suas exigências de agenda, de credibilidade e sobretudo de captação.
Isso nos envia a segunda observação que se refere ao modo de tratamento da informação em que parece dominar essa ideologia da dramatização de que havíamos falado. É uma ideologia cada vez mais impregnada pela pressão dos jogos econômicos nos quais se encontra toda a televisão, seja ela pública ou privada. O aspecto quantitativo do nosso estudo mostrou a importância conferida às cenas das vítimas e do conflito armado, e às cenas marcadas por um “afrancesamento” do conflito (o general Morillon e Mittérand, em Sarajevo), ao lado de cenas suscetíveis de provocar emoções. O estudo quantitativo colocou em evidência a fluidez dos imaginários que tocam o afeto (o sofrimento, a injustiça) ou o intelecto (a incompreensão das mídias, o não poder dos grandes). Isso confirma a ideologia da dramatização de que havíamos referido, que parece substituir qualquer tomada de posição.
A terceira observação diz respeito à questão da manipulação da opinião pública pela televisão. O fenômeno de oscilação da tomada de posição das mídias em favor das vítimas bósnias, muitas vezes por nos destacada, é interessante de reconsiderar sob o ângulo de um imaginário ao qual as mídias são muito sensíveis, que é o da "legitimidade". Lembremos que, no início do conflito, as emissoras apresentavam fatos que mostravam os croatas responsáveis por um ato de secessão, a ponto de sua força armada ser qualificada de "milícia". Vê-se, por esses exemplos, a tendência da televisão de tratar os conflitos em termos de legitimidade, como se, diante da constatação de uma desordem social (que, de resto, ela vai procurar e que ela impõe), fosse necessário imediatamente encontrar o responsável, o culpado do ato ilegítimo. Para a Guerra do Golfo isso foi fácil : a ordem social era representada pela tranqüilidade (tranqüilidade quer dizer que as mídias não falam dela) dos Estados no interior de suas fronteiras, a desordem pela transposição de uma fronteira e a invasão de um Estado vizinho. Para a guerra da ex-Iugoslávia, a coisa era menos clara, pois se tratava de uma desordem produzida no interior de um Estado. Isso não impede que o culpado do ato ilegítimo fosse imediatamente assinalado. Foram inicialmente os croatas, pelo seu ato de retirada, isto é, somente porque eles tiveram a iniciativa da divisão no interior de um Estado federal legítimo e de uma armada federal apresentada como tal. Mais tarde, porém, quando a televisão mostrou as vítimas bósnias, ela própria se colocou na armadilha de mudar de ponto de vista quanto à legitimidade das partes em presença. Foi-lhe necessário por isso mudar seu discurso e justificar uma reivindicação identitária em nome do imaginário moral do direito de existência dos povos. Tudo se passa como se a televisão se deixasse levar por duas constantes – contraditórias – do seu discurso quando foi preciso falar de um conflito no estrangeiro : a legitimidade está do lado do direito / a legitimidade está do lado das vítimas que reivindicam seu direito de existir.
Eis o que se chama um tratamento da informação a-histórica, cuja preocupação essencial é colar os imaginários sociais que parecem dominantes ao momento dado, em uma sociedade dada. Isso porque, para a televisão, o essencial é sobretudo não se enganar em relação aos imaginários dominantes, e trazer uma explicação história sábia. Isto é para ela (pelo menos é o que ela pensa) a garantia desta maioridade de opinião que ela procura atingir, a garantia da sua audiência, quando na realidade esses imaginários resultam de uma interação complexa entre aqueles que constroem as mídias e aqueles que circulam na sociedade. Encontra-se este fenômeno de "construção do espelho social" de que havíamos falado em outra obra [13]. É o fenômeno de interação no enquadramento da opinião pelas mídias e suas "reações" as quais muitas vezes ultrapassam o enquadramento. É verdade, contudo, que essa opinião publica é freqüentemente colocada em posição de ter de "apreciar" mais do que de "opinar" [14], pois a maior parte desses imaginários são construídos sobre uma base de afeto coletivo.
Em conseqüência não se deve atribuir às mídias e à televisão um poder exagerado de manipulação. Certamente elas impõem uma agenda de acontecimentos (sem esquecer que elas o fazem em relação ao mundo da política), certamente elas impõem uma forma de pensar, certamente lhes acontece de tocar a sensibilidade dos telespectadores, mas é mais razoável considerar que é em função de uma interação entre o que se passa nos diferentes campos e domínios das práticas sociais – nas quais os atores reagem – que se constrói a agenda de acontecimentos do mundo social [15].
Talvez, na origem desses novos conflitos, recomponham-se novos espaços públicos como a aparição de um poder esquecido (Hana Arendt). Talvez esses novos espaços públicos sejam efêmeros ou transitórios em relação a outras recomposições comunitárias. Do que se "torna acontecimento" nos espaços públicos, talvez a televisão só possa falar do surgimento, das desconstruções, das desordens, sem, entretanto, fornecer o seu sentido histórico. Diante do que foi exposto, é de se concluir que talvez a televisão não tenha outro poder senão o de "alertar", o que não é tão mau.